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Gorbachev foi incompetente e subestimou a tarefa que lhe cabia na URSS, diz historiador

Para Rodrigo Ianhez, que há 11 anos mora em Moscou, a dissolução da URSS não era uma inevitabilidade

O ex-líder soviético Mikhail Gorbachev em 2009. FOTO: DAVID GANNON/AFP
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Mikhail Gorbachev, o último dirigente da União Soviética, morreu nesta terça-feira 30, aos 91 anos, na Rússia. Enquanto esteve no poder, entre 1985 e 1991, realizou reformas marcantes, conhecidas como perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência), que lhe valeram grande reconhecimento no Ocidente.

Em 1990, recebeu o Prêmio Nobel da Paz por “praticamente ter posto fim à Guerra Fria”. Na Rússia, porém, era visto desde os anos 90 como uma figura controversa. Embora tenha sido o responsável por abrir caminhos em áreas como a liberdade de expressão, para muitos foi o culpado pelo fim da superpotência e pelos anos terríveis da crise econômica que vieram na esteira da dissolução da URSS.

Suas transformações provocaram a queda da “cortina de ferro”, como era conhecida a antiga fronteira política e ideológica entre a Europa Ocidental e a URSS.

Para compreender a dimensão de Gorbachev e as polêmicas em torno do ex-líder da União Soviética, CartaCapital entrevistou nesta terça-feira 30 o historiador Rodrigo Ianhez, especialista no período soviético. Ele mora na Rússia há 11 anos e conversou com a reportagem direto de Moscou.

Confira os destaques da entrevista:

CartaCapital: Qual é a importância da figura de Gorbachev para a URSS e para a Rússia?

Rodrigo Ianhez: É uma importância comparável somente à de Lenin e à de Stalin, porém com um legado controverso para aqueles que apoiaram visões de Lenin e Stalin. Apesar de o Gorbachev ter manifestado no início uma intenção de um retorno a Lenin, ele acabou tomando um rumo bastante diferente.

É uma figura sem a qual muito provavelmente o processo de dissolução da URSS teria sido bem diferente. Eu sou daqueles estudiosos que acreditam que havia outro caminho. Não sou só eu. Stephen F. Cohen, por exemplo, norte-americano, e outros acreditam que a dissolução da URSS não era uma inevitabilidade.

E o Gorbachev teve um papel central nisso, em parte por incompetência, em parte por subestimar a tarefa que lhe cabia naquele momento. Há uma série de erros que ele cometeu.

CC: Quais foram as consequências dos erros de Gorbachev?

RI: Quando eu comento essa situação, falo em uma tragédia. Não é à toa que a figura do Gorbachev, hoje, na Rússia e em outros países do espaço soviético, é muito desprezada. E isso já vem lá do início da década de 1990. Logo após a dissolução, o Gorbachev participa das primeiras eleições à Presidência e recebe uma votação diminuta, insignificante para quem ocupou o posto de líder da nação.

Por que esses resultados tão ruins? A vida entrou em um caos absoluto. A gente não tem análogos históricos do que aconteceu na URSS, um país que não perdeu uma guerra mas teve uma queda dos índices socioeconômicos comparável à de uma derrota em uma guerra de grandes proporções.

Estamos falando de uma diminuição da população de cerca de um milhão de pessoas por ano na Rússia, da diminuição em cerca de dez anos na expectativa de vida dos homens, de baixa natalidade, de migrações, de caos econômico, de pessoas sem receber salário. Enfim, o país que foi durante a Guerra Fria a segunda economia do mundo entrou em um processo de desindustrialização também sem análogo. Foi uma tragédia econômica e social.

Até o Putin fala que o fim da União Soviética “foi a maior tragédia geopolítica”. Às vezes tiram do contexto e tentam atribuir ao Putin um saudosismo da URSS que não existe. Ele se refere às consequências sociais e econômicas que os russos e os outros cidadãos da antiga URSS sofreram na pele.

Mesmo países que hoje se integraram à Europa, como os do Báltico, perderam em determinado momento quase metade de sua população por causa das migrações e da deterioração da base material. Foi um caos cujas consequências a gente não pode diminuir.

CC: Quais seriam as alternativas à dissolução da URSS?

RI: Normalmente, nós, historiadores, não gostamos de partir para esse tipo de elucubração. Porém, no caso da URSS, há historiadores muito sérios que enxergam possíveis caminhos alternativos.

O Gorbachev não sai do nada. Ele foi muito apoiado, levado a Moscou sob a proteção do Yuri Andropov, que chega a ser secretário-geral da URSS após a morte do Brezhnev, em 1982. Porém, o Andropov chega ao poder já com uma saúde muito debilitada, com idade avançada, e não consegue promover as reformas que pretendia. Ele enxergava a necessidade de reformas, mas era uma figura muito mais cautelosa que o Gorbachev, que é conhecido por ser um tanto impulsivo, excessivamente ambicioso, que gostava muito de grandes planos.

Uma das primeiras grandes campanhas que o Gorbachev lançou foi uma contra o alcoolismo, que foi um fracasso total, extremamente criticada. Virou motivo de piada. Foi uma medida tomada apressadamente, sem pesar as consequências, e acabou gerando uma crise enorme. As pessoas começaram a comprar doces e açúcar para fazer a vodca caseira. Aí tiveram que tirar o açúcar do mercado para tentar evitar isso, mas logo perceberam que a campanha era inviável.

Foi um exemplo de como ele conduziria reformas tão ambiciosas: sem pensar muito nas consequências, com muita improvisação. Resultou no que resultou.

O Andropov tinha essa mentalidade de realizar reformas, mas de uma natureza diferente, em um ritmo menos acelerado, com metas menos ambiciosas, algo mais no médio e no longo prazos. Acho que é o Hobsbawn quem cita um membro do governo russo dizendo que se o Andropov tivesse chegado ao poder 15 anos antes, talvez ainda tivéssemos a URSS no mapa.

Essa é uma alternativa. Agora, o Gorbachev consegue chegar ao poder justamente por causa desse momento em que o Partido Comunista da União Soviética acaba deixando a liderança envelhecer. A partir de 1975, a saúde do Brezhnev começa a se tornar um grande problema, mas ainda assim optam por mantê-lo lá. Quando o Andropov chega ao poder, muito velho, morre em menos de dois anos e é seguido pelo Chernenko, que também morre em menos de dois anos. Isso se torna até motivo de chacota. E, de certa forma, é isso que permitiu ao Gorbachev chegar ao poder. Era a figura mais jovem do Politburo, figura ambiciosa, enérgica. Para tentar sair dessa crise em que se meteram, eles elegem o Gorbachev em 1985.

CC: A imagem de Gorbachev no Ocidente mudou nos últimos anos?

RI: Acho um elemento interessante. O legado do Gorbachev é tão contraditório e polêmico que ele próprio, nos últimos anos, começou a se pronunciar no sentido de que estaria arrependido da maneira como as coisas caminharam sob seu governo e de que sua intenção nunca tinha sido dissolver a URSS. E ele acabou sendo relegado ao esquecimento também no Ocidente.

Desde a década de 1990 ele era uma figura desprezada no espaço soviético, mas no Ocidente ele ainda gozava de certo prestígio. Era frequentemente chamado para palestrar e dar entrevistas. Porém, nos últimos anos, começou a mostrar arrependimento daquilo que o Ocidente considera o grande legado dele: a dissolução da URSS.

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